“Quando eu soltar a
minha voz, por favor, entenda. Que palavras por palavras eis
aqui uma pessoa se entregando. Coração
na boca, peito aberto, vou sangrando. São as lutas dessa nossa vida que eu estou cantando”. Gonzaguinha
Uma terça. Dia 15 de
abril de 2014. Ontem.
A Vila Santa Cecília
não é o bairro por onde transito, necessariamente, de segunda à sexta. Trabalho
no Aterrado e circulo pela cidade, por muitos bairros, mas raramente vou à
Vila, de segunda à sexta.
Ontem fui. E num
horário ainda mais inusitado: 11 horas. A essa hora, normalmente, estou, ainda, em
algum CRAS, prestando atendimento. Mas ontem não foi assim.
Havia marcado com minha
ortodontista, às 11 horas, e me atrasei. Mas fui. Encerrado o atendimento, e já que
estava na Vila, fui almoçar no meu restaurante preferido: Mutirão. Meu dia
mudou ali.
Ao passar pela calçada
do Cine 9 de Abril e pegar a rota para subir a escada que leva ao Mutirão me
deparei com uma mulher, aparentando ter uns 50 anos de idade, negra, em aparente situação de rua, caída sobre os
degraus do cinema; debruçada sobre o chão, seminua e evacuando. Havia muitas
pessoas no local, mas tive a sensação de que só eu havia visto aquela mulher.
Um grupo de homens
conversava tranquilamente bem perto dali, mas a presença daquela mulher sequer
foi notada. Num outro momento, uma mãe, juntamente com seus dois filhos, estava também ali perto, mas a cena não chamou sua atenção. Não havia nada (demais) ali. Ninguém
a viu! Aquela mulher estava totalmente invisível!
Fiquei, por um tempo,
parada, chocada. Despertei, então, e passei a mão no celular e comecei a fazer ligações,
na tentativa de ser a voz daquela que estava invisível. Liguei para o telefone
de colegas de trabalho, mas era hora de almoço e a maioria não atendia. Deixei
recados, recebi ligações... Fui orientada a procurar pelo SAMU. Liguei. Falei
com uma médica. Respondi perguntas estapafúrdias. Em vão. Não foram lá. Fiquei
parada esperando. Não foram. Chorei. Me senti
sozinha ali, com ela. “Como ninguém parou diante daquela situação?” Saí dali
e voltei para o trabalho. Dividi minha indignação com as pessoas. Mobilizei.
Fizemos mais ligações. Agora, para o abrigo da cidade. Prontificaram-se a ir
lá. As horas passavam e não tínhamos resposta.
Finalmente por volta
das 16h, a mulher foi vista; retirada daquele local e acolhida. Me ligaram: “Achamos
a mulher da Vila, Carol. Ela está bem, agora.”
Enquanto acolhiam a
mulher da Vila, eu estava no Fórum, para mais uma tarde de luta, de empenho. É
preciso coragem para encarar as Serventias. Encontrei uma amiga e colega de
profissão e conversávamos sobre Filosofia do Direito, sobre os princípios
fundamentais da coisa toda; tudo aquilo que me fizera querer ser advogada e trabalhar na
política da assistência social. Disse: “Se isso tudo aqui (me referia ao
Judiciário) só existe para garantir que as leis sejam cumpridas, para que os
direitos das pessoas sejam respeitados, o que é que estamos fazendo, quando
isso não é o que acontece?”. Daí uma outra colega de profissão, que também
estava sobre o balcão da Serventia, me respondeu: “A Dra é muito romântica.
Também já fui assim.” Acho que não preciso descrever o que senti naquela hora,
naquele dia.
É por isso que a mulher
não foi vista. Não vemos mais nada! Estamos cegos, socialmente cegos! Mas a cegueira não caminha só, ela anda junto com a preguiça, com o preconceito, com a omissão, com o não-reconhecimento.
“A companhia de alguém é sentida como uma influência capaz de transpor a
já preciosa companhia de coisas, plantas ou bichos. Há certas experiências que
não chegamos a alcançar senão em companhia de gente. Antropólogos,
psicanalistas ou psicólogos sociais não cansam de frisar certas experiências
para as quais nascemos mais ou menos preparados, mas que, fora da companhia dos
outros, fora, sobretudo de uma comunidade com outros humanos, não germinam.”
(José Moura Gonçalves Filho. Professor e pesquisador do Departamento de
Psicologia Social da USP).