sábado, 13 de setembro de 2014

Condição pós-moderna.

Acelera, acelera, acelera... E quando pára, cai entristecido. A semana inteira é assim. Chega sexta (ufa!) resolve sair. Vai pra rua, pra "balada", pra "night", pra desacelerar. Toma vodca com energético. Mantém o ritmo. Fala muito e muito alto. Fica surdo! Não sabe parar, não sabe ficar só, não sabe respirar!

Vai pra casa entorpecido. Acha que está relaxado. O coração está disparado. Não consegue dormir. Tenta. Não consegue. Entra em pânico. Pensa na vida que leva, na saúde que perde, na infância... Se olha no espelho e se sente um velho. Se estica, se empina, sorri. Mas quando relaxa o rosto, se percebe velho. O rosto se dissolve. O tempo é implacável e ele não o vê passar. Toma um valium e vai dormir.

Acorda sábado, às 16h. O sol bate na cara amassada. Noite mal dormida, vida mal vivida. Vai pro chuveiro e se esquece por lá. Deseja que o dia passe rápido e que a noite chegue logo. É a noite que ele se acha. Tenta assistir televisão, mas apenas liga o aparelho. Os dedos teclam com velocidade o celular. O telefone toca. O celular vibra. São muitas as mensagens, os emails, os convites. É requisitado pra festas e encontros. A noite promete! Escolhe bem o traje, se perfuma. Engole um enlatado e sai. Vai pra casa de uns amigos, para o "pré night". Depois? Não se sabe... Pra aquecer, toma vodca com energético. Mantém o ritmo. Fala muito e muito alto. Fica surdo! Não sabe parar, não sabe ficar só, não sabe respirar!

Vai pra casa entorpecido, acha que está relaxado. O coração está disparado. Não consegue dormir. Tenta. Não consegue. Entra em pânico. Pensa na vida que leva, na saúde que perde, na infância... Toma um valium e vai dormir.

Acorda e já é domingo. Se sente deprimido: "Amanhã já é segunda! Não fiz nada...". O sol brilha lá fora, mas ele não se sente disposto. As prateleiras estão cheias de livros, mas ele não se sente disposto. Há bons filmes na tevê, mas... Resta o celular que nunca dorme. Ele encara. Tecla rapidamente. O telefone toca. O celular vibra. São muitas as mensagens, os emails, os convites. É requisitado pra festas e encontros. "A noite nunca dorme!". Vai pra rua, pra saideira. Desta vez foi só um chopinho. Volta sozinho... Acha que está relaxado, mas o coração está disparado e a respiração ofegante. Não consegue dormir. Tenta. Não consegue. Entra em pânico. Pensa na vida que leva, na saúde que perde, na infância... Toma um valium e vai dormir.

Acorda e é segunda. Acelera...

Planeja viagens que nunca faz. Sonha viver um grande amor, mas não encontra ninguém para amar. Trabalha, ganha dinheiro, e não vê o tempo passar. Compra livros que nunca lê, equipamentos que nunca usa. Só anda de carro, pra ganhar tempo... Um tempo que nunca tem!

Volta pra casa, pro celular e pro valium.


terça-feira, 12 de agosto de 2014

Nem cuspe nem giz!

A sala está agitada. Barulheira do primeiro dia, do primeiro período, do começo. É tudo novo! Os corpos se agitam. Vou chegando, me apropriando do espaço. Os alunos me observam, mas até que eu fale algo, sou uma intrusa. É preciso falar para quebrar o gelo. Começo, então, pelo começo. Apresento-me, vou com calma, papeando, sentindo a turma. Apresento o assunto com leveza, quero conquistá-los antes de me adentrar em temas mais complexos. Tudo tem sua hora e toda turma tem suas características próprias, sua temperatura. Por isso minhas aulas acabam sendo distintas para cada turma, apesar de o conteúdo ser o mesmo, quando se trata da mesma disciplina. Percebe-los é minha primeira lição de casa e levo-a muito a sério.

Não me lembro de ter querido algum dia ser professora. Nunca me imaginei assim! O mestrado me levou à sala de aula tão naturalmente que nem parei muito para refletir sobre o assunto. Parece que fui escolhida ao invés de escolher. Embarquei nessa e agora quero mais e mais. Tô viciada!

O período passado foi um divisor de águas, do que experimentei até agora. A disciplina era Direito e Cidadania para turmas de Engenharia de Produção e Civil. Pensei: Vou ter que fazer mágica para atrair o interesse desses futuros engenheiros! Fui com calma, sentindo a turma... Com o tempo passamos a discutir filosofia, política, ética, violência urbana, tráfico de drogas, desigualdade social... Temas complexos! Certo dia levei um livro para sala de aula: "Homens Invisíveis: Relato sobre uma humilhação social", de Fernando Braga da Costa. Uma tese de mestrado de Psicologia Social da USP, que virou livro e que descobri por acaso na biblioteca da própria faculdade. Que tema! Não pude resistir! Tinha que levar aquilo tudo para sala de aula! E foi o que fiz. Primeiro, queria que os alunos entrassem no clima do livro, pra isso fiz uma nota introdutória. Expliquei quem era o autor, qual havia sido sua experiência para escrever o livro (ele havia trabalhado com os garis da USP por 9 anos), sua motivação e tudo mais... Depois escolhi, à dedo, um trecho que fosse bastante significativo e que reunisse o espírito da tese em poucas palavras pra não ficar enfadonha a leitura. Ah, foi absolutamente fantástico o impacto daquelas frases! A sala parecia um santuário! O silêncio era tanto que vez ou outra olhava por cima do livro para ver se haviam dormido ou saído todos. Que nada, estavam todos ali, se entregando e se emocionando com cada palavra. A turma adorou! O tema rendeu muitas aulas depois. Não foram poucos os emails que recebi de alunos querendo saber mais, pedindo mais aulas sobre o assunto. Indiquei-lhes o livro para e muitos pesquisaram a respeito na internet e fizeram questão de relatar experiências pessoais. Foi um sucesso!

Desde então chego com um projeto em sala de aula. Uma ideia para ser absorvida, mas que está aberta a negociação. Claro, há o plano de ensino e os objetivos do curso, mas há também muito espaço para criação e é desta parte que mais gosto! Levo um roteiro e uma proposta e os alunos aderem e vêm comigo ou não. E é daí que partimos por outros caminhos - novos caminhos construídos a partir destes encontros.

Esta é a magia! Não vejo outra razão que me leve às salas de aula...

Lembro muito da minha mãe, de suas aulas, de seu empenho e paciência. Lembro também do meu pai e de suas aulas teatrais, cheias de gestos e exemplos que mais parecem roteiros de filmes... Bebo na fonte dos dois e na de muitos outros mestres, dentre eles, Gilles Deleuze, para quem "uma aula é uma espécie de matéria em movimento".

Sigo, pois, em movimento...









quarta-feira, 16 de abril de 2014

A "mulher da Vila" e a invisibilidade social.

Quando eu soltar a minha voz, por favor, entenda. Que palavras por palavras eis aqui uma pessoa se entregando. Coração na boca, peito aberto, vou sangrando. São as lutas dessa nossa vida que eu estou cantando”. Gonzaguinha

Uma terça. Dia 15 de abril de 2014. Ontem.

A Vila Santa Cecília não é o bairro por onde transito, necessariamente, de segunda à sexta. Trabalho no Aterrado e circulo pela cidade, por muitos bairros, mas raramente vou à Vila, de segunda à sexta.

Ontem fui. E num horário ainda mais inusitado: 11 horas. A essa hora, normalmente, estou, ainda, em algum CRAS, prestando atendimento. Mas ontem não foi assim.

Havia marcado com minha ortodontista, às 11 horas, e me atrasei. Mas fui. Encerrado o atendimento, e já que estava na Vila, fui almoçar no meu restaurante preferido: Mutirão. Meu dia mudou ali.

Ao passar pela calçada do Cine 9 de Abril e pegar a rota para subir a escada que leva ao Mutirão me deparei com uma mulher, aparentando ter uns 50 anos de idade, negra, em aparente situação de rua, caída sobre os degraus do cinema; debruçada sobre o chão, seminua e evacuando. Havia muitas pessoas no local, mas tive a sensação de que só eu havia visto aquela mulher.

Um grupo de homens conversava tranquilamente bem perto dali, mas a presença daquela mulher sequer foi notada. Num outro momento, uma mãe, juntamente com seus dois filhos, estava também ali perto, mas a cena não chamou sua atenção. Não havia nada (demais) ali. Ninguém a viu! Aquela mulher estava totalmente invisível!

Fiquei, por um tempo, parada, chocada. Despertei, então, e passei a mão no celular e comecei a fazer ligações, na tentativa de ser a voz daquela que estava invisível. Liguei para o telefone de colegas de trabalho, mas era hora de almoço e a maioria não atendia. Deixei recados, recebi ligações... Fui orientada a procurar pelo SAMU. Liguei. Falei com uma médica. Respondi perguntas estapafúrdias. Em vão. Não foram lá. Fiquei parada esperando. Não foram. Chorei. Me senti sozinha ali, com ela. “Como ninguém parou diante daquela situação?” Saí dali e voltei para o trabalho. Dividi minha indignação com as pessoas. Mobilizei. Fizemos mais ligações. Agora, para o abrigo da cidade. Prontificaram-se a ir lá. As horas passavam e não tínhamos resposta.

Finalmente por volta das 16h, a mulher foi vista; retirada daquele local e acolhida. Me ligaram: “Achamos a mulher da Vila, Carol. Ela está bem, agora.”

Enquanto acolhiam a mulher da Vila, eu estava no Fórum, para mais uma tarde de luta, de empenho. É preciso coragem para encarar as Serventias. Encontrei uma amiga e colega de profissão e conversávamos sobre Filosofia do Direito, sobre os princípios fundamentais da coisa toda; tudo aquilo que me fizera querer ser advogada e trabalhar na política da assistência social. Disse: “Se isso tudo aqui (me referia ao Judiciário) só existe para garantir que as leis sejam cumpridas, para que os direitos das pessoas sejam respeitados, o que é que estamos fazendo, quando isso não é o que acontece?”. Daí uma outra colega de profissão, que também estava sobre o balcão da Serventia, me respondeu: “A Dra é muito romântica. Também já fui assim.” Acho que não preciso descrever o que senti naquela hora, naquele dia.

É por isso que a mulher não foi vista. Não vemos mais nada! Estamos cegos, socialmente cegos! Mas a cegueira não caminha só, ela anda junto com a preguiça, com o preconceito, com a omissão, com o não-reconhecimento.

A companhia de alguém é sentida como uma influência capaz de transpor a já preciosa companhia de coisas, plantas ou bichos. Há certas experiências que não chegamos a alcançar senão em companhia de gente. Antropólogos, psicanalistas ou psicólogos sociais não cansam de frisar certas experiências para as quais nascemos mais ou menos preparados, mas que, fora da companhia dos outros, fora, sobretudo de uma comunidade com outros humanos, não germinam.” (José Moura Gonçalves Filho. Professor e pesquisador do Departamento de Psicologia Social da USP).